MALDITAS PALAVRAS
Era um evento sobre leitura com pessoas boas que querem ler mais os livros, embora às vezes esqueçam de ler o mundo. Mas os livros estão no mundo e o mundo nos livros. Todos os mundos o mundo. Seria bom que lessem Coetzee, muito Coetzee, mas parece que não o leem.
Orgulham-se do museu da carne, no qual penetrei como se viajasse às cavernas onde o primitivo falava a partir de suas entranhas. Reassistindo ao filme Os Companheiros, pensei estar no tempo certo, não querendo viver a revolução industrial, nem da poltrona do cinema. Mas também não quero esse mundo que ainda aceita a escravidão animal.
RECÊNCIA
Palavra criada por Roberto Silva, a quem passo a palavra:
Pois, recência é a qualidade daquilo
que foi feito há pouco tempo,
aquele frescor, ou aquele calor.
Feito pãozinho quente comprado
às seis da manhã na padaria, pura recência.
(Roberto Silva é um gênio brasileiro, cujo talento será amplamente reconhecido algumas décadas após sua morte. Gaúcho radicado na Paraíba, onde fotografa as gentes locais e faz crônicas universais)
A TRISTEZA DAS PALAVRAS
Tristeza de Escrever
Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página:
Por isso a palavra escrita é sempre triste...Mario Quintana
Quando ia ao Hospital Colônia de Itapuã, com Achutti para fazer a tese ou depois para o filme sobre o hospital e a hanseníase, visitava dona Lori no seu quartinho tão lindo. Ontem, perguntei a Liliana Sulzbach, que está fazendo o seu filme sobre o HCI, e soube que morreu. Daí o texto abaixo encontrou seu fim antes do que pretendia:
Quando nada mais sobra, sobra a memória. Quando a memória é dolorosa, resta a imaginação. Se não a temos, há quem tenha por nós. São os escritores de boa literatura. Nos recônditos do Rio Grande do Sul, num lugar chamado Hospital Colônia de Itapuã, deparei com a tristeza vestida de azul. Uma senhora cega, sentada na ponta da estreita cama, mãos curvadas, voz titubeante e sotaque alemão. As frases vinham na ponta de um punhal, mas o quartinho azul-mar tentava uma versão amena à sua dor. O rádio, um cão beagle de pelúcia, crucifixo e fotos na parede, bibelôs e fronha, colcha, paninho de crochê da mesma cor pareciam contrariar o opaco do olhar, que há muito renunciara à sua função. Quarto de menina, menina na foto da parede, a vida tinha parado por ali.
Ela tinha uma ânsia de falar, mas seu conteúdo estava gasto como a retina e repetido no rancor. Desde então tentei em vão um voluntário para lhe ler novas histórias. Alguém disposto a andar quase duas horas de Porto Alegre até o hospital, em ônibus de horários escassos e falhos, levando consigo contos russos, contos nórdicos, contos tropicais, poemas parnasianos, poemas românticos, épicos, sagas e narrativas de vitórias. Não encontrei essa alma leitora e hoje, ao buscar notícias da senhora hanseniana, soube que morreu. Sem ter podido viver outras histórias, mesmo que alheias.
Ler é uma forma de mergulhar na imaginação do outro quando a nossa falha. E a nossa falha por razões que ainda cabem compreender. Ao mergulhar na imaginação alheia, alimentamos a nossa, produzimos a nossa. Podemos ler também para nos tornarmos mais críticos, mais sagazes, mais profundos. Mas escrevo hoje sobre o inverso: se nossa profundidade já foi longe demais na condição humana, lemos para obter a solidariedade do Outro, e para olhar para nós de diferente ponto de vista, até mesmo, e principalmente, quando não temos isso: a vista.
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