A SAÚDE DEVE ESTAR ONDE O POVO ESTÁ E NÃO ONDE OS MÉDICOS QUEREM ESTAR

Hospital de Clínicas: nem Grêmio nem Inter. 


Costuma-se dizer que no RS tudo se “grenaliza” (por que não “intergrena”, relevante questão). Vai aí uma análise sobre o que é falso dilema. Desconhecem-se as pessoas que não gostam de futebol bem como as que gostam mas não do futebol profissional e, por fim, as pessoas que gostam de tudo, inclusive sem ter preferência por um ou outro time . Falso dilema: ou se é inter ou se é grêmio. Falso dilema: vidas humanas ou árvores.

Na sua fase inicial de desenvolvimento, as crianças raciocinam numa lógica binária. Para elas, ou se pode ou não se pode, é bom ou é ruim. As crianças estão se desenvolvendo e é natural que passem por essa fase, digamos, inicial de raciocinar. Elas precisam classificações, elas precisam que uma coisa exclua a outra. O pensamento mais sofisticado, mais complexo, vai se iniciar com o tempo.

Mas não para todos. Aqueles que pensam em termos de vidas humanas versus vidas de árvores raciocinam como uma criança de dois anos de idade. Assim como não se explica a teoria da relatividade a uma criança de dois anos, também não vale a pena discutir com quem estaciona ali naquele falso dilema. Para quem está tentando se inteirar do tema e tem idade mental superior à da infância, cabe comentar alguns pontos envolvidos na polêmica da hora de Porto Alegre. 


Na base da discussão, está um projeto de serviços de saúde. Como vimos recentemente, os médicos brasileiros (não todos obviamente) têm resistência em atuar em lugares (cidade ou bairros nas cidades) não centrais. Eles não deixam de ter razão, nossas periferias são mal cuidadas pelo poder público e ficam à margem de todos os recursos, como urbanização, segurança, etc. As entidades médicas reforçam a ideia de concentração de hospitais nas regiões centrais. O certo era termos políticas democráticas que incluíssem todos os bairros.

Erro número 1. Concentrar recursos em ampliação do Clínicas. Este hospital fica numa das regiões mais densas da cidade. Praticamente todas as ruas que o cercam sofrem com engarrafamentos (numa cidade que investe no modelo carrocêntrico, esse meio de transporte individual, social e ambientalmente caro segue privilegiado). A chegada de pacientes a este local não se dá de forma fácil - antes mesmo de o hospital ser ampliado. Observe-se que a ampliação dá conta de mais estacionamentos para automóveis individuais, o que tem por consequência óbvia mais ocupação das ruas por esse modal. 


Quem tem se mostrado tão a favor da vida humana, favor incluir no conceito de vida humana a população da periferia que muitas vezes morre antes de chegar aos bons hospitais. 

Quem tem se mostrado tão a favor da vida humana, favor incluir a saúde preventiva. Observe que essa política de saúde promove a doença para depois falar em tratamento. A vida em cidades poluídas é causa importante de adoecimento. (Bem, a indústria farmacêutica agradece a esse tipo de política que tantos estão apoiando). 

Erro número 2. Projeto que não levou em conta a retirada de 240 ou 250 árvores. Soluções arquitetônicas criativas parece que não constam desse projeto. Precisamos ouvir mais pareceres técnicos a respeito de alternativas para essa ampliação (o que não invalida o argumento principal de que a saúde deve estar onde o povo está e não onde os médicos querem estar)

Dois erros já estão bons para princípio de conversa.


Falta mencionar o campo de futebol existente na mesma quadra que pertence à associação de funcionários, que está sendo poupado, porque deve ser muito mais importante um bate-bola eventual do que um bosque que só interessa à saúde do planeta e da humanidade. 

VEGANOS NÃO SÃO SUPERIORES, APENAS NÃO SÃO BÁRBAROS




Certamente existe o patamar zero da moralidade, isto é, o estágio mais básico de todos, mas já no qual o sujeito se move baseado em noções introjetadas e pacificadas de certo e errado. Tanto assim  é que ele nem mesmo se dá conta disso. Ele não precisa teorizar sobre as coisas automáticas. Por exemplo: ninguém se acha muito ético ou alardeia aos quatro ventos o fato de que não tenta esmagar o pescoço de criancinhas recém-nascidas, que não chuta as canelas de velhinhas que fazem sua caminhada matinal, que não coloca açúcar no saleiro de um diabético. Enfim, existem ações tão básicas que não faz qualquer sentido a pessoa delas se orgulhar ou, por meio delas, se sentir superior. Entretanto, quando esse sujeito depara com pessoas que esmagam criancinhas, chutam velhinhas, agravam os males dos doentes, ele naturalmente fica indignado com tais ações e sua tendência é dizer que tais ações são erradas no intuito de que elas parem de acontecer. 

Percebam que ele não se dirige às pessoas que praticam tais atos dizendo que elas são absurdas, pré-civilizadas e que deveriam queimar no inferno (se eventualmente o fazem, talvez se deva ao calor do momento). Ele reage para que aquelas ações tenham fim, e a criancinha, a velhinha e o doente possam voltar à sua vida normal, a qual têm legítimo direito, apesar de, por sua fraqueza e debilidade, não conseguirem lutar por tal direito nas mesmas condições.

O veganismo faz parte desse estágio zero da moralidade, junto a tantas outras formas de ser e de agir. Ele não faz do vegano um sujeito especial, nem superior, iluminado ou exemplo de altruísmo – nem ele se vê assim. Ele sabe que faz apenas o básico: ele não usa desnecessariamente outros seres apenas porque eles são mais fracos. (Os veganos não estão livres de serem incoerentes e serem, por exemplo, racistas, homofóbicos ou toscos em qualquer outra dimensão da vida. Por sorte e por razões óbvias, tais pessoas são minoritárias, eu arriscaria a dizer até inexpressivas numericamente)

Quando alguém se ofende com a presença de um vegano ou com seu discurso está apenas revelando o natural reconhecimento de que não atingiu (ainda, espera-se) o estágio zero da moralidade.  Ao menos, nesse aspecto de sua vida, ele é pré-ético. Talvez – e muito provavelmente – em outros aspectos da vida ele seja bastante civilizado. Ele é até “normal”, o que, sabemos, numa sociedade como a nossa não significa grande coisa.

Na nossa casa, praticamos uma série de ações, todas elas inspiradas em exemplos de outras pessoas que nos ensinaram a fazer coisas e pensar de certa maneira, cuja justificação foi por nós pensada e ponderada. Não lembro de acharmos ofensivas novas ideias sobre como encarar a vida e o Outro, mesmo quando elas implicaram consideráveis mudanças.  Lembro de passarmos a pensar nelas e em como implementá-las. Quando não conseguimos, ficamos com a sensação de fracasso, mas não passamos a buscar as possíveis contradições de quem nos nos enunciou pressupostos éticos de como ser e agir, tampouco nos ofendemos e não transformamos nosso sentimento de fracasso em ataque a quem nos fez reconhecê-lo. E, muito menos, repetimos argumentos gastos, frágeis, grosseiros, numa patética tentativa de racionalização. Ela, a tentativa de racionalizar, só nos exporia mais ainda ao fracasso e correríamos o risco de acabarmos convencendo apenas a nós mesmos das débeis “verdades”, como apoio à contagem de carneirinhos para poder dormir bem.

Para resumir: veganos não são superiores;  em geral não se sentem superiores. Como, porém, não lutam por si mesmos, não adotam a causa animal para favorecer seus interesses, talvez isso soe aos olhos de alguns como um ofensivo altruísmo: quem lhes dá o direito de lutar por seres que, esses sim, consideramos inferiores?  Somos bastante acostumados a que parcelas de humanos lutem por causas que lhes digam respeito ou sejam, de algum modo, muito próximas. Somos muito pouco acostumados quando a estrutura da luta é outra.


Para resumir mais ainda: não se ofendam quando veganos lhes falam sobre os direitos animais, eles não estão pedindo seu voto, seu dinheiro, não querem qualquer benefício pessoal, não querem que vocês percam direitos, nem disputam sua fé, a não ser que esta fé se refira à confiança na justiça. Eles só querem que seres muito fracos possam ser defendidos (cobrem dos veganos quando eventualmente algum deles não é defensor de direitos humanos em paralelo com os direitos animais). Nada pode ser mais básico em ética do que isso.  

PAIS E TURISTAS

Artigo publicado em  Zero Hora de 16 de janeiro de 2014.



“Detesto férias, porque não se sabe o que fazer com as crianças”. Não foi a primeira vez que escutei essa frase, dita por pessoas que aparentemente renunciaram a ser aquilo que um dia escolheram ser:  pais. Enquanto os filhos anseiam pelo período de descanso escolar, os pais se veem perdidos porque não sabem ser companhia para os filhos ou não sabem onde deixá-los, e as crianças ficam sem endereço, estranhas indesejadas na própria casa.

Nos anos 80, quando estava no nível médio, uma colega um dia reconheceu: “só passei dois anos da minha vida sem ser em escola”. Na época, foi uma surpresa que nos assustou. Hoje esse número se reduziu a dois ou três meses e já não causa espanto.

Depois de nascidas, as crianças seguiram um caminho que, nos últimos tempos, foi-se naturalizando. Em meio ao período da amamentação, lá estavam elas sendo conduzidas para creches, das quais com o passar dos anos pularam para escolinhas até desembarcarem em escolas, estas instituições que, para desespero dos pais, inventaram dois meses ou mais de recesso. 

Creche alguma é boa, a menos que comparada com outra creche, mas jamais deveria ser considerada melhor do que a casa. Há crianças órfãs, há crianças abandonadas, há famílias sem qualquer condição de acompanhar e cuidar dos filhos na própria casa. Mas há famílias que teriam todas as condições para isso, mas aceitaram o marketing da creche, das escolinhas e da discutível tese de que a socialização deve começar desde cedo, unida espertamente à outra tese segundo a qual a qualidade da convivência compensa a quantidade. O que é preciso saber é que isso terá consequências. As crianças não se tornarão piores, muitas não adoecerão nem se mostrarão abatidas e deprimidas.

No outro extremo da vida, os idosos viverão o mesmo problema: serem levados a viver com estranhos, num endereço que não é o seu, sob cuidado de especialistas. Mais uma vez, há casos em que isso se faz realmente necessário, mas não é, por certo, o caso de todos os idosos asilados.

Cabe uma comparação com os sistemas de defesa de que todos desfrutamos. Se nos alimentamos mal, com exageros, com toxinas, não necessariamente adoeceremos, mas obrigatoriamente faremos nosso sistema imunológico trabalhar mais e de forma mais árdua, com preços que um dia talvez nos sejam cobrados.  O mesmo se dá com o psiquismo.

A necessidade de ficar na própria casa é legítima demais para ser compreendida como birra. Não se defende que as crianças não sejam contrariadas. Ao contrário, elas devem conhecer o sentimento de frustração para aprender a lidar com a vida real. Alguns desejos das crianças, porém, precisam ser escutados porque eles brotam de necessidades estruturais. Ser acordada no frio do inverno para ser levada para fora de casa, ter uma existência de superexposição, em que não decide o que fazer no minuto seguinte, submetida a programações diárias não criadas por ela nem em combinação com ela não é a melhor maneira de se iniciar no mundo com saúde mental e alegria. Quando muito, é um recurso que oferecem as instituições para resolver um problema das famílias que não deveria ser um problema da criança. Nesse contexto, são bem-vindas as ternas advertências presentes no livro “A Criança Terceirizada” (Papirus) do médico pediatra José Martins Filho (ex-reitor e professor de pediatria da UNICAMP) quando diz que não se pode priorizar o trabalho em detrimento das crianças.

No lugar de terceirizar os filhos, os pais poderiam experimentar ouvir as crianças, naturalmente não fazendo a escuta literal, mas sabendo, de um lado, interpretar suas ânsias por consumo, seus desejos de tecnologia, enfim, de gratificações a curto prazo e, de outro, observando os sinais físicos, como adoecimentos, sobrepesos, alergias. São incontáveis as formas pelas quais as crianças tentam mostrar quando não estão bem, mesmo que incapazes de verbalizar. É preciso que alguém se disponha a prestar atenção nelas.

Quando os pais não sabem o que fazer com as crianças já que, como turistas retornam à casa, identificamos um grave sintoma de que essa geração perdeu até mesmo as formas intuitivas de criar os filhos.