PAIS E TURISTAS

Artigo publicado em  Zero Hora de 16 de janeiro de 2014.



“Detesto férias, porque não se sabe o que fazer com as crianças”. Não foi a primeira vez que escutei essa frase, dita por pessoas que aparentemente renunciaram a ser aquilo que um dia escolheram ser:  pais. Enquanto os filhos anseiam pelo período de descanso escolar, os pais se veem perdidos porque não sabem ser companhia para os filhos ou não sabem onde deixá-los, e as crianças ficam sem endereço, estranhas indesejadas na própria casa.

Nos anos 80, quando estava no nível médio, uma colega um dia reconheceu: “só passei dois anos da minha vida sem ser em escola”. Na época, foi uma surpresa que nos assustou. Hoje esse número se reduziu a dois ou três meses e já não causa espanto.

Depois de nascidas, as crianças seguiram um caminho que, nos últimos tempos, foi-se naturalizando. Em meio ao período da amamentação, lá estavam elas sendo conduzidas para creches, das quais com o passar dos anos pularam para escolinhas até desembarcarem em escolas, estas instituições que, para desespero dos pais, inventaram dois meses ou mais de recesso. 

Creche alguma é boa, a menos que comparada com outra creche, mas jamais deveria ser considerada melhor do que a casa. Há crianças órfãs, há crianças abandonadas, há famílias sem qualquer condição de acompanhar e cuidar dos filhos na própria casa. Mas há famílias que teriam todas as condições para isso, mas aceitaram o marketing da creche, das escolinhas e da discutível tese de que a socialização deve começar desde cedo, unida espertamente à outra tese segundo a qual a qualidade da convivência compensa a quantidade. O que é preciso saber é que isso terá consequências. As crianças não se tornarão piores, muitas não adoecerão nem se mostrarão abatidas e deprimidas.

No outro extremo da vida, os idosos viverão o mesmo problema: serem levados a viver com estranhos, num endereço que não é o seu, sob cuidado de especialistas. Mais uma vez, há casos em que isso se faz realmente necessário, mas não é, por certo, o caso de todos os idosos asilados.

Cabe uma comparação com os sistemas de defesa de que todos desfrutamos. Se nos alimentamos mal, com exageros, com toxinas, não necessariamente adoeceremos, mas obrigatoriamente faremos nosso sistema imunológico trabalhar mais e de forma mais árdua, com preços que um dia talvez nos sejam cobrados.  O mesmo se dá com o psiquismo.

A necessidade de ficar na própria casa é legítima demais para ser compreendida como birra. Não se defende que as crianças não sejam contrariadas. Ao contrário, elas devem conhecer o sentimento de frustração para aprender a lidar com a vida real. Alguns desejos das crianças, porém, precisam ser escutados porque eles brotam de necessidades estruturais. Ser acordada no frio do inverno para ser levada para fora de casa, ter uma existência de superexposição, em que não decide o que fazer no minuto seguinte, submetida a programações diárias não criadas por ela nem em combinação com ela não é a melhor maneira de se iniciar no mundo com saúde mental e alegria. Quando muito, é um recurso que oferecem as instituições para resolver um problema das famílias que não deveria ser um problema da criança. Nesse contexto, são bem-vindas as ternas advertências presentes no livro “A Criança Terceirizada” (Papirus) do médico pediatra José Martins Filho (ex-reitor e professor de pediatria da UNICAMP) quando diz que não se pode priorizar o trabalho em detrimento das crianças.

No lugar de terceirizar os filhos, os pais poderiam experimentar ouvir as crianças, naturalmente não fazendo a escuta literal, mas sabendo, de um lado, interpretar suas ânsias por consumo, seus desejos de tecnologia, enfim, de gratificações a curto prazo e, de outro, observando os sinais físicos, como adoecimentos, sobrepesos, alergias. São incontáveis as formas pelas quais as crianças tentam mostrar quando não estão bem, mesmo que incapazes de verbalizar. É preciso que alguém se disponha a prestar atenção nelas.

Quando os pais não sabem o que fazer com as crianças já que, como turistas retornam à casa, identificamos um grave sintoma de que essa geração perdeu até mesmo as formas intuitivas de criar os filhos. 

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