Certamente existe o patamar zero da moralidade, isto é, o
estágio mais básico de todos, mas já no qual o sujeito se move baseado em noções
introjetadas e pacificadas de certo e errado. Tanto assim é que ele nem mesmo se dá conta disso. Ele não
precisa teorizar sobre as coisas automáticas. Por exemplo: ninguém se acha muito ético ou
alardeia aos quatro ventos o fato de que não tenta esmagar o pescoço de
criancinhas recém-nascidas, que não chuta as canelas de velhinhas que fazem sua
caminhada matinal, que não coloca açúcar no saleiro de um diabético. Enfim,
existem ações tão básicas que não faz qualquer sentido a pessoa delas se
orgulhar ou, por meio delas, se sentir superior. Entretanto, quando esse
sujeito depara com pessoas que esmagam criancinhas, chutam velhinhas, agravam
os males dos doentes, ele naturalmente fica indignado com tais ações e sua
tendência é dizer que tais ações são erradas no intuito de que elas parem de
acontecer.
Percebam que ele não se dirige às pessoas que praticam tais atos dizendo que elas são
absurdas, pré-civilizadas e que deveriam queimar no inferno (se eventualmente o
fazem, talvez se deva ao
calor do momento). Ele reage para que aquelas ações tenham fim, e a criancinha,
a velhinha e o doente possam voltar à sua vida normal, a qual têm legítimo
direito, apesar de, por sua fraqueza e debilidade, não conseguirem lutar por tal direito nas mesmas condições.
O veganismo faz parte desse estágio zero da moralidade,
junto a tantas outras formas de ser e de agir. Ele não faz do vegano um sujeito
especial, nem superior, iluminado ou exemplo de altruísmo – nem ele se vê assim.
Ele sabe que faz apenas o básico: ele não usa desnecessariamente outros seres
apenas porque eles são mais fracos. (Os veganos não estão livres de serem incoerentes e serem, por exemplo, racistas, homofóbicos ou toscos em qualquer outra dimensão da vida. Por sorte e por razões óbvias, tais pessoas são minoritárias, eu arriscaria a dizer até inexpressivas numericamente)
Quando alguém se ofende com a presença de
um vegano ou com seu discurso está apenas revelando o natural reconhecimento de
que não atingiu (ainda, espera-se) o estágio zero da moralidade. Ao menos, nesse aspecto de sua vida, ele é
pré-ético. Talvez – e muito provavelmente – em outros aspectos da vida ele seja bastante civilizado. Ele é até “normal”, o que, sabemos, numa sociedade como a
nossa não significa grande coisa.
Na nossa casa, praticamos uma série de ações, todas elas
inspiradas em exemplos de outras pessoas que nos ensinaram a fazer coisas e
pensar de certa maneira, cuja justificação foi por nós pensada e ponderada. Não
lembro de acharmos ofensivas novas ideias sobre como encarar a vida e o Outro,
mesmo quando elas implicaram consideráveis mudanças. Lembro de passarmos a pensar nelas e em como
implementá-las. Quando não conseguimos, ficamos com a sensação de fracasso, mas
não passamos a buscar as possíveis contradições de quem nos nos enunciou
pressupostos éticos de como ser e agir, tampouco nos ofendemos e não
transformamos nosso sentimento de fracasso em ataque a quem nos fez reconhecê-lo.
E, muito menos, repetimos argumentos gastos, frágeis, grosseiros, numa patética
tentativa de racionalização. Ela, a tentativa de racionalizar, só nos exporia
mais ainda ao fracasso e correríamos o risco de acabarmos convencendo apenas a
nós mesmos das débeis “verdades”, como apoio à contagem de carneirinhos para poder dormir bem.
Para resumir: veganos não são superiores; em geral não se sentem superiores. Como,
porém, não lutam por si mesmos, não adotam a causa animal para favorecer seus
interesses, talvez isso soe aos olhos de alguns como um ofensivo altruísmo: quem lhes dá o direito de lutar por seres
que, esses sim, consideramos inferiores? Somos bastante acostumados a que parcelas de
humanos lutem por causas que lhes digam respeito ou sejam, de algum modo, muito
próximas. Somos muito pouco acostumados quando a estrutura da luta é outra.
Para resumir mais ainda: não se ofendam quando veganos lhes
falam sobre os direitos animais, eles não estão pedindo seu voto, seu dinheiro, não querem qualquer benefício pessoal, não querem que vocês percam direitos, nem disputam sua fé, a não ser que esta fé se
refira à confiança na justiça. Eles só querem que seres muito fracos possam ser
defendidos (cobrem dos veganos quando eventualmente algum deles não é defensor de direitos humanos em paralelo com os direitos animais). Nada pode ser mais básico em ética do que isso.
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