Anagogia
Anagogia. do Gr. aná, para cima + agogé, ação de conduzir
s. f., elevação;arrebatamento da alma;arroubamento.
Ela achou um ponto para mirar, franziu um pouco o cenho e esperou o sinal. A foto foi feita. Esperou paciente dia após dia até que pudesse vê-la. Mais, nunca saberemos. Nem mesmo se foi buscá-la. A fotografia fez com que existisse, revelada na sua anagogia cética. Não sei bem porquê, mas é no que penso quando a vejo assim, tão forte sem saber o quão desamparada está.
Os anos 30 e a melancolia
do Lat. melancholia mélas, negro + ckolé, bílis, fel.
Seus olhares olhando o nada ou o futuro, o que parecia dar no mesmo. Seria o entre-guerras? O fato de viverem numa pequena cidade do interior do estado mais ao sul? Ou seria nada relacionado a tempo e espaço, mas às vidas de cada um?
Eles não estão distraídos. Na sua frente, meu vô ajeitou seus equipamentos de fotografia, deu-lhes ordens de como se postarem, irritou-se com suas demoras e incertezas e lhes deixou claro de muitos modos que fotografias não eram então coisas banais. O peso da importância das fotos fez-lhes o fel negro dominar as pupilas.
Osga
Osga: do Ár. usga
s. f., Zool., réptil sáurio;
pop., grande aversão;ódio;asco.
A aluna olhou para a minha mesa e perguntou: Professoraaa! Está praticando levitação? Por um segundo, o corpo ficou tremendamente leve e foi como se pairasse um ou dois centímetros acima da borracha preta, ainda que por sorte ninguém tivesse notado, nem mesmo a Carol. No lugar de afirmar: sim, eu levito - há anos que levito uma ou duas vezes por semana (o que pouco surpreenderia meus alunos que parecem dispostos a aceitar qualquer esquisitice que parta de um professor da área de humanas), respondi: não, minha querida: Manual Prático de Levitação é o título de um dos contos e dá nome a esse livro do escritor angolano José Eduardo Agualusa.
Levitei porque me transportei de volta às férias. Não fomos à Paraíba. Mas ao Sri Lanka, Angola, Inglaterra, França e Estados Unidos. Assim, levitando, isto é, lendo. Bandeiras Pálidas, O Vendedor de Passados e Estação das Chuvas, Como ser Legal, Trópico de Câncer e Fup foram as minhas passagens, todas de primeira classe, tendo podido escolher viajar na rede, com refeições veganas e sem precisar apertar cintos. A comparação ler-viajar é gasta, sem deixar de ser boa.
Com Agualusa aprendi a gostar mais ainda das osgas (que eu só conhecia por lagartixas, no Nordeste, por calangos). Não que gostasse delas por conta do argumento batido e tão especista: porque “controlam” insetos. Até preferiria osgas vegetarianas. Mas Eulálio, a osga-narradora do Vendedor de Passados, em meio ao lirismo, faz refletir sobre temas acadêmicos, como memória e reconstituição histórica, além dos psicanalíticos. Só que uma página do romance = dez teorias em setecentas páginas, com a diferença de que muito melhor do que cada uma destas. Além disso, durante uma semana pude assumir a perspectiva da osga para acompanhar e amar uma casa e seus freqüentadores, na tristeza de vencer as páginas e saber que em breve perderia todas aquelas pessoas, sem controlar a ânsia de saber o que mais aconteceria a elas. E se um autor como Agualusa escrevesse uma obra sem fim, uma seqüência de livros, que pudéssemos ler ao longo de uma vida e que apenas terminasse no dia da nossa morte? Carol, eu levitaria para sempre !
Bandeiras Pálidas - Michael Ondaatje (Companhia das Letras)
O Vendedor de Passados - José Eduardo Agualusa (Griphus)
Estação das Chuvas - José Eduardo Agualusa (Griphus)
Como ser legal - Nick Hornby (Rocco)
Trópico de Câncer - Henry Miller (Ibrasa)
Fup - Jim Dodge (Nova Fronteira)
Mas a casa é cercada
A mulher do lado e do alto diz para a mulher de cima e do alto que deixará seu apartamento e irá para um lugar sem cachorros. Os cachorros, no caso, devem ser os que moram conosco, Caçula, Santo Agostinho e Dona Baixinha. Todos os humanos da redondeza gritam quando falam e quando brigam, mas os cães deveriam ser mudos. Descubro assim que deve ter sido ela quem chamou a Zoonoses e que nos alegrou um dia com a visita de um simpático fiscal que achou tudo muito bem nesta casa de gatos e cães.
A mulher de cima hoje contratou uma pessoa para podar a cerca viva para que ela fique longe de seu ar condicionado. Deixou bem claro que aprecia mais as cercas mortas. Vivemos cercados de pessoas que preferem tudo morto ou tudo humano. Sem plantas e sem animais.
Enquanto eles ladram, a cerca viva sobe.
A mulher de cima hoje contratou uma pessoa para podar a cerca viva para que ela fique longe de seu ar condicionado. Deixou bem claro que aprecia mais as cercas mortas. Vivemos cercados de pessoas que preferem tudo morto ou tudo humano. Sem plantas e sem animais.
Enquanto eles ladram, a cerca viva sobe.
A casa e o bovarismo
Antes do pior calor de março, bem antes do inverno gelado e molhado, noites de estar em casa. Viver a casa é estar com os animais, com as músicas, as comidas da Leela, esperando o João chegar com o leite de soja para assistirmos a uma comédia francesa tirada hoje na pequena locadora do bairro.
Assim não importa tanto que as férias tenham terminado. Importa é poder continuar lendo romances e planejando dias melhores, como aqueles em que voltaremos à Aldeia Perdida (perdida no meio da Baía da Traição), reencontrar Valdomiro, que cedeu seu braço para o frontispício desse blog, dona Flor e dona Amélia aí em cima na foto. Sem contar Roberto, Val e Romero.
Sonhando com eles e com os 365 dias de sol da Paraíba dá para suportar esse sul. O sentimento produzido quando a imaginação se solta, quando se percebe o coração pulsando e se viaja sem rédeas, conhecido como bovarismo (ver Daniel Pennac e os direitos do leitor), só pode ocorrer assim, no tempo do não trabalho.
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